terça-feira, 28 de setembro de 2010

A Última Viagem

Houve uma altura em que eu ganhava a vida como motorista de táxi. Os passageiros embarcavam totalmente anónimos. E, às vezes, contavam-me episódios das suas vidas, as suas alegrias e as suas tristezas... Encontrei pessoas que me surpreenderam. Mas, nenhuma como aquela da noite de 25 para 26 de Julho do último ano em que trabalhei.
Já tarde, quase noite, uma chamada vinda de um pequeno prédio num bairro pobre dos arredores da cidade. Quando cheguei só se ouviam os cães a ladrar lá longe. O prédio estava escuro, com excepção de uma única lâmpada acesa numa janela do rés-do-chão. Nestas circunstâncias, outros teriam buzinado duas ou três vezes, esperariam um bocado e depois, iam-se logo embora.
Mas, eu sabia que muitas pessoas dependiam de táxis como único meio de transporte para mais a tal hora. A não ser, portanto, que a situação fosse claramente perigosa, mas algo me dizia para eu esperar...
"Este cliente pode ser alguém que necessita de ajuda", pensei eu. Assim, fui até à porta e bati.
"-Um minutinho", respondeu uma voz, débil e idosa. Ouvi alguma coisa ser arrastada pelo chão... Depois de uma pausa longa, a porta abriu-se. Vi-me então diante de uma senhora bem idosa, pequenina e de frágil aparência! Usava um vestido estampado e um chapéu bizarro daqueles usados pelas senhoras idosas nos filmes da década de 40! E equilibrava-se numa bengala, enquanto segurava com dificuldade, uma pequena mala... Dava para ver que a mobília estava toda coberta com lençóis. Não havia relógios, roupas ou adornos sobre os móveis. Num canto, jazia uma caixa aberta com fotografias e vidros...
A velha senhora, esboçando então um tímido sorriso de quem havia já perdido todos os dentes, pediu-me:
“O senhor poderia ajudar-me a levar a mala?”
Eu peguei a mala e ajudei-a a caminhar lentamente até ao carro. E enquanto se acomodava ela ficou a agradecer-me...
-"Não é nada, apenas procuro tratar os meus clientes do jeito que gostaria que me tratassem a mim ou aos meus”...
-" Oh!, você é um bom rapaz!"
Quando embarcámos, deu-me um endereço num papel todo amassado e pediu:
-"O senhor podia ir pelo centro da cidade?"
-" Este não é o trajecto mais curto", alertei-a prontamente.
-" Eu não me importo... Não estou com pressa... O meu destino é o último! O lar de idosos"...
Surpreso, olhei pelo retrovisor.
Os olhos da velhinha brilhavam marejados...tristes...
-" Eu já não tenho família e o médico disse-me que tenho muito pouco tempo"...
Disfarçadamente desliguei o taxímetro e perguntei:
-"Qual o caminho que a senhora deseja que eu tome?"
Nas horas seguintes conduzi por toda a cidade. Ela mostrou-me um edifício na Praça Luís de Camões, um velho hotel, onde trabalhara como recepcionista...
Nós passámos pela casa em que ela e o esposo tinham vivido como recém-casados.
E também pela Igreja de São Francisco, onde comemoraram as Bodas de Ouro!
Pediu-me que passasse em frente a uma loja de móveis na região da Praça da Liberdade, que havia sido autrora, um grande salão de dança que ela frequentara quando jovem!
De vez em quando, pedia-me para conduzir devagar em frente a um prédio ou esquina, rua ou avenida. Era quando ficava então com os olhos fixos na escuridão, sem dizer nada... E olhava. Olhava e suspirava...
E assim andámos a noite inteira...
Quando o primeiro raio de sol surgiu no horizonte, ela disse de repente:
"Estou cansada... E pronta! Vamos agora!"
Seguimos, então, em silêncio, para o endereço que ela me tinha dado. Chegámos a um prédio rodeado de árvores, uma pequena casa de repouso. Dois funcionários caminharam até ao táxi, assim que parámos. Eram amáveis e atentos e logo se acercaram da velha senhora, a quem pareciam já esperar.
Abri o porta-bagagens do carro e levei a pequena mala até à porta. A senhora, já sentada numa cadeira de rodas, perguntou-me então pelo custo da corrida.
-" Quanto lhe devo?", perguntou ela, pegando a carteira na sua mala.
-"Nada!", disse eu.
-" Mas você tem que ganhar a vida, meu jovem”
-" Há outros passageiros", respondi.
Quase sem pensar, curvei-me e dei-lhe um abraço. Ela envolveu-me comovidamente e devolveu-me com um beijo afectuoso e repleto da mais pura e genuína gratidão!
E disse:
-"Você deu a esta velhinha bons momentos de alegria, como não tinha há tanto tempo...Você não sabe o quanto fez por mim! Obrigada, meu amigo! Mil vezes obrigada!!!”
Apertei a sua mão pela última vez e caminhei no lusco-fusco da alvorada sem olhar para trás, pois as lágrimas corriam-me abundantes pela face... Atrás de mim uma porta foi fechada. Era o som do término de uma vida... Naquele dia deixei a profissão de taxista.
Dirigi sem rumo, perdido nos meus pensamentos. Mal podia falar.
Dois dias depois, tomei coragem e voltei ao lar para ver como estava a minha mais nova amiga. Disseram-me, então, que na noite anterior adormecera para sempre, em paz e feliz... E fiquei a pensar, se a velhinha tivesse pegado um taxista mal-educado e raivoso... Ou, então, algum que estivesse ansioso para terminar o seu turno... Óh, E se eu tivesse recusado a corrida? Ou tivesse buzinado uma vez e ido embora?...
Ao relembrar, creio que jamais tenha feito algo mais importante na minha vida até então!
Em geral somos condicionados a pensar que as nossas vidas giram em torno de grandes momentos. Todavia, os grandes momentos frequentemente apanham-nos desprevenidos e ficam guardados em recantos que quase toda a gente considera sem importância... e quando damos conta... já passou.
As pessoas podem não se lembrar exactamente do que você fez, ou do que você disse. Mas, elas sempre se irão lembrar de como as fez sentir.
Portanto, podemos fazer a diferença! Pense nisto!!!

Os idosos de hoje, somos nós amanhã!

Nenhum comentário:

Postar um comentário